sábado, 24 de maio de 2014

COPA : Novos paradigmas de qualidade para o movimento social

Quando era criança ouvia dizer que os serviços públicos só iriam melhorar no dia que os mais ricos os usassem. Faz sentido. O miserável tende a achar qualquer migalha que prolongue sua vida por mais um dia como dádiva, sem questionar qualidade. O que vier está bom, como nas propagandas eleitorais onde a pessoa está num lugar deplorável mas agora tem pavimentação na rua, e diz sorrindo : "agora melhorou 100%". Se a rua se acabar na primeira chuva e tudo voltar ao que era antes ninguém ouvirá a chiadeira, afinal, para muitos aquilo foi uma concessão, ninguém lutou para merecer o benefício, etc.

Aeroporto de Brasília - novo terminal
Do outro lado, alguém que tenha tido o melhor resistirá a descer para o pior. Quem já foi a um país estrangeiro mais equilibrado socialmente e vê a sociedade com alto nível de organização fica indignado ao voltar ao Brasil, porque não entende como somos tão "atrasados". E quase todos os dessa condição pregam pela melhoria da sua vida, do seu bairro, numa perspectiva egoísta. "Quero o padrão americano para mim, e dane-se o resto", é o discurso.

Terminada a ditadura, onde não se podia reclamar e o judiciário era inexistente, criaram-se instrumentos para a exigência de qualidade, como o Código do Consumidor, os juizados, Procons, etc. A mídia também dedica espaços a denúncias e muitas pessoas ficaram mais exigentes. Hoje o comerciante já sabe que poderá ter prejuízos se vender má qualidade.

Nossos carros, por exemplo, foram chamados de carroças pelo Collor, que gostava de esbanjar tecnologia. Aí abriu a importação e o que chegou foram os Ladas russos, muito rudimentares, por causa do preço. Hoje o governo impõe cada vez mais requisitos para nivelar os veículos fabricados por aqui com os feitos no exterior. Recentemente foi imposto o airbag. Houve chiadeira, disseram que os carros iam ficar mais caros mas aparentemente isso não aconteceu. Saiu por conta do "lucro Brasil", aquela parcela de sobrelucro dos fabricantes.

Estádio Mané Garrincha - Brasília - Copa das Confederações
E a Copa com isso? Acredito que o tal Padrão FIFA tenha sido um motivador de insatisfações que levaram as pessoas às ruas e ao descontentamento que vemos agora às vésperas dos jogos, à medida que as obras e serviços vão sendo entregues. Quem faz estádios e aeroportos de padrão de primeiro mundo também faz casas populares, escolas e hospitais assim, protestam alguns. Por que o esquema de segurança da Copa não é feito o tempo todo em todo lugar? Por que o país todo não tem os BRTs, a telefonia 4G, que algumas cidades ganharam para a Copa?

Considero que um dos legados da Copa foi o estabelecimento de novos paradigmas, novos referenciais. O discurso da classe média que sequer usa hospitais ou escolas públicas denunciando que o que existe não presta alcançou os setores emergentes da nova classe média e mesmo os excluídos. Há um ódio generalizado à Copa como se algo lhes tivesse sido arrancado, como se coisas mais importantes fossem preteridas, o que é uma meia verdade. O que foi gasto e que deixará legados materiais por muitos anos não custou nem um mês do que se gasta com educação.

Uma outra consequência esperada veio da exclusão da maioria do povo do processo de decisão dos eventos de preparação da Copa. As remoções de favelas ganharam visibilidade bem como os dramas dos atingidos, incluindo os esquecidos na luta cidadã. A implantação de Unidades de Polícia Pacificadora no Rio, por exemplo, ao mesmo tempo que abriram uma nova perspectiva para a maioria das pessoas das comunidades que eram oprimidas pelo tráfico também trouxe à luz as atrocidades policiais que eram ocultas antes dos holofotes dos movimentos anti-Copa. Até os traçados de obras de mobilidade passaram a ser questionados. Tudo isso, infelizmente, muito depois das obras já estarem em andamento. Mesmo assim a manifestação popular passou aos políticos a reprovação pelo autoritarismo decisório.

A realização da Copa também é um tapa na cara dos que apostaram na incompetência do Brasil em todos os sentidos. Infundiram pela mídia nacional e estrangeira a idéia do "desastre" ou "vexame" do Brasil diante do desafio de organizar um evento dessa magnitude, por sermos uma nação de "vira-latas" que só aprecia o que fazem no exterior e se sente incapaz de fazer algo do padrão do "primeiro mundo". Esse paradigma também foi destruído. Fomos capazes de organizar uma coisa complexa como a Copa, o mundo todo vai ver isso, apesar de sermos um país com problemas sociais, etc, etc. Se podemos fazer isso, podemos mais.

Se fizemos tudo isso para um evento como a Copa, imaginem como pode ser depois da Copa?

Historiadores colocarão a Copa com uma espécie de fato gerador de mudanças que durarão por anos. Se o povo não fosse para as ruas, independentemente dos interesses envolvidos, o Congresso não dedicaria os recursos do pré-sal para a saúde e educação. A maioria queria entregar os royalties a todas as prefeituras e governos estaduais, sem "carimbar" as verbas com obrigações de uso. Com a mobilização Dilma conseguiu passar sua proposta de reserva de recursos para a educação e saúde. Mais ainda: conseguiu apoio para a aprovação do programa Mais Médicos, que hoje já cobre uma população de quase 50 milhões de pessoas.

Nas próximas lutas oriundas do "efeito Copa" estão o planejamento do uso dos recursos do pré-sal destinados à saúde e educação. O que queremos? Fazer mais do mesmo? Claro que não. Precisamos de um projeto que em poucos anos eleve a qualidade de saúde e educação, e, sem utopia, um dia elimine a mercantilização desses setores, com escolas, professores, hospitais e médicos qualificados, valorizados, com recursos materiais suficientes para desestimular a existência de planos de saúde ou escolas privadas.

O principal paradigma pulverizado foi o da submissão ao estado, aos políticos, à repressão e às máfias da mídia. Mostrou-se que dá para encarar o sistema, e a consequência que não foi completada será a radical mudança do sistema político. Nestas eleições a pauta de uma Constituinte Soberana deve segregar o joio do trigo na hora de escolher candidatos. Quem for a favor poderá ter o voto. Os contra, fora.


Talvez Blatter, Walcker e a FIFA jamais pensassem que a arrogância imperial deles pudesse trazer tantos desdobramentos na história do Brasil. Os governantes que conseguiram a Copa e a viabilizaram também devem ter percebido que se fossem começar hoje todo o processo não seria mais a mesma coisa. O povo mudou, o país mudou, e as futuras decisões terão que contar com mais participação social.


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