sábado, 15 de outubro de 2011

Ocupar Wall Street : e depois?

Qualquer que tenha sido a real motivação do movimento de ocupação do centro financeiro de Nova Iorque (Wall Street), o fato é que se espalhou pelo mundo pelas redes sociais, e já há manifestações em frente a outras bolsas de valores. Em grande parte as pessoas são "contra", e parecem esperar que o sistema capitalista se auto-ajuste, na falta de uma pauta de reivindicações unificadas ou de um programa de mudanças. Para subsidiar essas indagações, segue o artigo do prof. Giovanni Alves, da UNESP:


Ocupar Wall Street...e depois?

Os novos movimentos sociais compõem o quadro da barbárie social que impregna a ordem burguesa mundial, abrindo um campo de contradições sociais que dilaceram por dentro a ordem do capital – dilaceram, mas são incapazes, em si e por si, de ir além. Talvez, falta-lhes clareza do próximo passo ou do elo mais próximo da corrente de indignação coletiva que clama, por exemplo, pela democracia real. Por isso, nos interrogamos: Ocupar Wall Street...e depois? O artigo é de Giovanni Alves.

Giovanni Alves
O M12M, Movimento 12 de Março ou “Geração à Rasca”, em Portugal; o M15M, Movimento 15 de Março ou movimento dos indignados, na Espanha e o “Occupy Wall Street”, nos Estados Unidos, surgem no bojo da aguda crise financeira que atinge o núcleo orgânico do capitalismo global desde 2008. O movimento “Occupy Wall Street” nos EUA se inspirou nos movimentos sociais europeus como o M15M da Espanha. Por conseguinte, o movimento dos indignados espanhóis se inspirou nas rebeliões de massa que impulsionaram a “Primavera Árabe” e que derrubaram governos na Tunísia e Egito. 

A profunda crise do subprime de 2008 foi muito sentida pelos países norte-africanos, piorando os níveis de pobreza, e tendo como detonador a elevação do preço dos alimentos e outros produtos básicos. A multidão árabe, composta em sua maioria por jovens trabalhadores precários e desempregados, se mobilizaram por meio das redes sociais. 

Em todos os novos movimentos sociais, o papel das redes sociais, como o facebook e twitter, na organização das manifestações sociais de massa foi importante. Na verdade, “Occupy Wall Street”, o movimentos dos indignados e o movimento “geração à rasca” são exemplos candentes da verdadeira globalização “dos debaixo” que se contrapõe hoje a globalização dos “de cima”. 

Podemos salientar algumas das características desses novos movimentos sociais:

Primeiro, são movimentos de densa e complexa diversidade social, exprimindo a universalização da condição de proletariedade (os 99%). No caso europeu, muitos dos manifestantes são jovens empregados e operários precários, trabalhadores desempregados, estudantes de graduação subjugados pelo endividamento e inseguros quanto ao seu futuro, constituindo o denominado “precariato”; incluem também, no caso do “Occupy Wall Street”, veteranos de guerra, sindicalistas, pobres e profissionais liberais, anarquistas, hippíes, juventude desencantada, trabalhadores organizados, sindicalistas, etc. 

Entre milhares de pessoas, encontraram-se, lado a lado, por exemplo, jovens anticapitalistas e enfermeiras em defesa do sistema de saúde. Há cartazes de protesto contra o racismo, o presidente Obama, os republicanos, os democratas, a fome, as guerras no Iraque e Afeganistão. 

Em contrapartida, defende-se os direitos dos trabalhadores, os dos prisioneiros em greve de fome, mais impostos para os milionários e a reestruturação do sistema financeiro. No movimento dos indignados espanhóis, defendem, por exemplo, a “democracia real”. Enfim, trata-se do denso e vasto continente do novo (e precário) mundo do trabalho e da proletariedade extrema que emerge no bojo dos “trinta anos perversos” de capitalismo neoliberal. 

Segundo, são movimentos sociais pacíficos, recusando-se a adotar táticas violentas e contra a lei, evitando, deste modo, a criminalização. Eles têm profunda consciência moral e senso de justiça social, o que explica o sentido da expressão “indignados” (a crítica do capitalismo hoje implica, no plano da consciência contingente, um vetor intelectual-moral radical capaz de mobilizar o conjunto da “multidão” de proletários que se vêem ultrajados em sua dignidade humana). 

Terceiro, utilizam-se das redes sociais, como facebook e twitter, ampliando sua área de intervenção territorial e mobilização social. Produzem sinergias sociais em rede, tecendo estratégias de luta territorial num cenário de crise social ampliada. Há tempos o MST - Movimento dos Sem-Terra, no Brasil, e o Zapatismo, no México, utilizam estratégias de ocupação como tática de luta e visibilidade social. Eles nos ensinam que, hoje, a luta contra o capital global que desterritorializa é a luta pela territorialização ampliada, difusa e descentrada (todos esses novos movimentos sociais não têm um líder). 

Quarto, são movimentos sociais capazes de inovacão e criatividade política na disseminação de seus propósitos de contestação social. Por exemplo, os manifestantes do “Occupy Wall Street” vestiram-se de zumbis corporativos para expor o caráter da ordem burguesa em sua etapa de crise estrutural, ou ainda, em virtude da proibição de utilizarem megafones, a multidão mais próxima dos oradores repete suas frases, para que os mais distantes pudessem ouvir e, por sua vez, repeti-las também. É o "microfone humano"; 

Quinto, expõem, com notável capacidade de comunicação e visibilidade, as misérias da ordem burguesa no pólo mais desenvolvido do sistema apodrecido pela financeirização da riqueza capitalista. A luta social anti-capitalista hoje é a luta para dar visibilidade às suas contradições candentes. Sob o capitalismo manipulatório, a regra é a ocultação das misérias da ordem burguesa. Os indignados europeus e norte-americanos expõem e criticam a concentração de riqueza (eles dizem representar os 99% contra os 1%), a precariedade do trabalho e da vida e principalmente, desmitificam a democracia ocidental. 

Sexto, os novos movimentos indignados, incluindo, é claro, o “Occupy Wall Street”, são movimentos que reivindicam a democratização radical contra a farsa democrática dos países capitalistas centrais. Esses movimentos sociais possuem um sentido de “agrietar” o capitalismo, isto é, fazer rachaduras no capitalismo global (expressão utilizados por John Holloway em seu último livro). Rachaduras que podem dar visibilidade ao Inferno do Real. De certo modo, sem o saber, os indignados buscam “negar” o capitalismo no interior do próprio capitalismo. Na medida em que ocorre a democratização radical da sociedade, desefetiva-se o Estado político do capital. Entretanto, os novos movimentos sociais da proletariedade extrema são, como a Esfinge do mito grego, uma incógnita social. Enfim, dizem eles: “decifra-me ou devoro-te”. 

O detalhe crucial que podemos salientar das características indicadas acima é que são movimentos democráticos de massa que ocorrem em países capitalistas sob o Estado de direito democrático - o que não era o caso, por exemplo, da Tunísia e Egito. A ampliação do desemprego e precariedade social no decorrer da década de 2000 nos EUA e União Européia, e principalmente a partir da crise financeira de 2008, impulsionaram a radicalidade das massas de jovens (e velhos) precários e indignados com governos sociais-democratas e conservadores incapazes de deterem o “moinho satânico” do capitalismo global. Portanto, os novos movimentos sociais são reverberações radicais do capitalismo financeiro senil. 

A crise financeira de 2008 expôs a mediocridade do governo democrata de Barak Obama que não conseguiu deter a influência de Wall Street na política norte-americana, frustrando muitos norte-americanos que acreditaram que ele deteria a hegemonia financeira. A crise da divida soberana de 2010 e a crise financeira da Zona do Euro expuseram a venalidade dos partidos social-democratas e socialistas nos elos mais fracos da União Européia. Os partidos hegemônicos da esquerda européia aceitaram a política neoliberal de austeridade da “troika” (FMI, Comissão Européia e Banco Central Europeu) aplicadas com zelo e fervor pela direita conservadora (o caso da Grécia e Portugal é paradigmático!). 

Na verdade, a crise do “núcleo orgânico” do sistema mundial do capital diz respeito não apenas a crise financeira com o estouro da bolha imobiliária em 2008 e a crise da dívida soberana européia em 2010 em virtude da incontinência fiscal de alguns países europeus; ou mesmo, a crise social devido a ampliação do desemprego e da precariedade laboral no bojo da corrosão do Estado social europeu que, diga-se de passagem, precede a crise financeira; a crise do nosso tempo histórico é também, e principalmente, a crise política dos partidos da ordem burguesa, partidos conservadores-liberais e partidos social-democratas ou socialistas, que nas últimas décadas, constituíram uma rede de interesses promíscuos com a grande finança especulativo-parasitária, iludindo, o tempo todo, seus eleitores incautos. 

Ao mesmo tempo, vislumbramos a crise do pensamento critico corroído pelo pós-modernismo e neopositivismo. No caso do continente europeus, berço do Iluminismo ocidental, a crise intelectual-moral da inteligência crítica é dramática. Na medida em que renunciou, em sua maioria, à critica radical do capitalismo a título da crença na possibilidade do “capitalismo ético” capaz de articular bem-estar social com interesses de acumulação de valor, a inteligência européia hoje, com honrosas exceções, encontra-se como os personagens divagantes do romance “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago. Como diz Slavoj Zizek, falta-lhes a tinta vermelha!. Ao mesmo tempo, no cenário político da crise européia, o ilusionismo da esquerda social-democrata ou socialista só é comparável ao cinismo dos conservadores de direita na preservação incólume da ordem burguesa. 

Os novos movimentos sociais que ocorrem na bojo do capitalismo senil têm o sentido radical dos carecimentos vinculados à condição de proletariedade e a vida reduzida de amplos contingentes de jovens órfãos de futuridade. Os jovens indignados nos obrigam a refletir sobre as formas e metamorfoses da consciência social. Eles representam um cadinho complexo e rico de formas de consciência social critica que emergem no estado de barbárie social. 

Num primeiro momento, a presença da massa de jovens e velhos rebeldes nas ruas e praças nos fascinam. O fervor em reconquistar de forma coletiva e pacífica, territórios urbanos, praças e largos, verdadeiros espaços públicos marginalizados pela lógica neoliberal privatista que privilegiou não espaços de manifestação social, mas espaços de consumo e fruição intimista. O que assistimos hoje nos EUA e Europa é quase uma catarse coletiva. Trata-se de individualidades pulsantes de indignação e rebeldia criativa, cada um com suas preocupações e dramas humanos singulares de homens e mulheres proletários; cada um com seus sonhos e pequenas utopias pessoais capazes de dar um sentido à vida por meio da resignificação do cotidiano como espaço de reivindicação coletiva de direitos usurpados. 

Num primeiro momento, os novos movimentos sociais não incorporam utopias grandiosas de emancipação social que exigem clareza politico-ideológica. Pelo contrário, eles expressam, em sua diversidade e amplitude de expectativas políticas, uma variedade de consciência social critica capaz de dizer “não" e mover-se contra o statu quo. Possuem em sua contingência irremediável de movimento social, um profundo lastro moral do impulso critico. Como indignados, eles fazem, mas não o sabem (como diria Marx). No plano contingente, fazem uma critica radical do capitalismo como modo de produção da vida social. Mas não podemos considerá-los, a rigor, movimentos sociais anti-capitalistas. Na verdade, o que predomina entre os manifestantes é um modo de consciência contingente capaz de expor, com indignação moral, as misérias do sistema sociometabólico do capital, mas sem identificar suas causalidades histórico-estruturais (o que não significa que não haja os mais diversos espectros de ativistas anti-capitalistas). 

Os movimentos sociais agem no plano da cotidianidade insubmissa, rompendo com a pseudo-concreticidade paralisante da rotina sistêmica, mas permanecendo no esteio da vida cotidiana. Talvez, falta-lhes clareza do próximo passo ou do elo mais próximo da corrente de indignação coletiva que clama, por exemplo, pela democracia real. Por isso, nos interrogamos: Ocupar Wall Street...e depois?

Entretanto, acreditamos que a função heurística magistral dos novos movimentos sociais é tão-somente expor as misérias da ordem burguesa senil. Mobilizam múltiplas expectativas, aspirações de consumo e sonhos da boa vida, projetando no movimento coletivo fantasias pretéritas, presentes e futuras de emancipação social ainda não bem discernidas. Talvez eles representem o espectro indefinido e nebuloso do comunismo que, como espectro do pai de Hamlet, nos anuncia que há algo de podre no Reino da Ordem burguesa. 

Ora, enquanto cientistas sociais (e não apenas como ativistas sociais), temos que analisar os novos movimentos sociais com objetividade e na perspectiva da lógica dialética capaz de apreender a riqueza do movimento contraditório do real. Aviso aos navegantes pós-modernos: hoje, mais do que nunca, o método dialético tornou-se indispensável no exercício da crítica social. Torna-se imprescindível apreender no movimento do real, a dialética candente entre subjetividade e objetividade, alcances e limites, contingência e necessidade, barbárie e civilização. Não podemos ser tão-somente seduzidos pelo fascínio da contingência indignada nas praças e ruas. Os novos movimentos sociais de indignados compõem o quadro da barbárie social que impregna a ordem burguesa mundial, abrindo um campo de sinistras contradições sociais que dilaceram por dentro a ordem do capital – dilaceram, mas são incapazes, em si e por si, de ir além. 

Nessas circunstancias criticas, surgem interrogações candentes que nos afligem irremediavelmente: 

(1) terão os movimentos sociais de indignados capacidade de elaborar em si e para si uma plataforma política mínima capaz de exercitar a hegemonia social e cultural, preparando-se para uma longa “guerra de posição”, acumulando forças sociais e políticas sob o cenário da barbárie social e do capitalismo manipulatório?; 

(2) terão eles possibilidade de criar condições efetivas (politico-ideológicas) para o surgimento de novas organizações de classe, capazes de traduzir, no plano da institucionalidade democrática, as medidas necessárias para realizarem os anseios dos indignados, sob pena da frustração irremediável? (é importante lembrar, como nos alerta Boaventura de Sousa Santos, que o colapso de expectativas é o esteio do fascismo social). 

Enfim, até que ponto movimentos sociais como o “Occupy Wall Street” e os movimentos de indignados europeus terão a densidade histórica necessária para derrubar ou pautar governos, refundar ou enterrar partidos, fortalecer ou descartar lideranças ? 

(3) Finalmente, até que ponto seriam eles efetivamente capazes de fazer história numa perspectiva para além do capitalismo que, em si e para si, é incapaz de incorporar as demandas sociais do precariato, tendo em vista a nova fase do capitalismo histórico imerso em contradições sociais candentes? 

Estamos diante de impasses históricos inéditos. Por um lado, o aprofundamento da crise social na década de 2010 na Europa e nos EUA, a perspectiva de guerra – desta vez contra o Irã - e de recessão global; e por outro lado, a falta de estratégia de poder e anti-poder dos movimentos sociais, o extremismo conservador e a hesitação (e mediocridade política) de partidos políticos da esquerda social-democrata e socialista, coloca-nos diante de um caldo ameaçador do fascismo político sob o pano de fundo da barbárie social. 

Não podemos subestimar, num cenário de barbárie social, a capacidade de resposta reacionária do establishment. É ingenuidade política acreditar que o Estado burguês não utilizará mecanismos de administração policial, no tempo certo, que vise isolar os novos movimentos sociais, na medida em que eles se ampliam; invisibilizá-los de modo midiático, caso se torne necessário (há uma intensa batalha midiática ocorrendo em todo o mundo!) ou então, dissuadi-los e absorve-los com concessões residuais capazes de preservar a ordem burguesa; no limite, pode-se simplesmente reprimi-los a título de preservar a ordem pública com o apoio da “classe média” perplexa e amedrontada pelo ameaça do terrorismo auto-induzido do estado de exceção. 

A crise do capitalismo global colocará para a humanidade, sob pena de irmos à ruína, a necessidade do controle social, capaz de dar resposta aos carecimentos radicais postos pelos movimentos sociais que ocupam espaços públicos do mundo do capital e lutam contra o estado de barbárie social do capitalismo global em sua fase senil. Como diria o velho barbudo:Hic Rhodus, hic salta! 

(*) Giovanni Alves é professor da UNESP, pesquisador do ,CNPq, atualmente fazendo pós-doutorado na Universidade de Coimbra/Portugal e autor do livro “ Trabalho e Subjetividade – O “espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório” (Editora Boitempo, 2011). Site: www.giovannialves.org /e-mail:giovanni.alves@uol.com.br

Fonte: Agência Carta Maior

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